Uma fábula sobre a fábula

18-02-2011 12:49

Uma fábula sobre a fábula

 

(Lenda Oriental)

 

Allahur Akbar! Allahur Akbar! (Deus é grande! Deus é

grande!)

Quando Deus criou a mulher criou também a fantasia.

Um dia a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão

Harun Al-Raschid.

Envolta em lindas formas num véu claro e transparente, foi ela bater à porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras mulçumanas. Ao ver aquela

formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas

perguntou-lhe:

- Quem és?

- Sou a Verdade! - respondeu ela, com voz firme. – Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, o Cheique do Islã!

O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio,  apressou-se em levar a nova ao grão-vizir:

- Senhor, - disse, inclinando-se humilde, - uma mulher desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano,  o sultão Harun Al-Raschid, Príncipe dos Crentes.

- Como se chama?

- Chama-se a Verdade!

- A Verdade! - exclamou o grão-vizir, subitamente

assaltado de grande espanto. - A Verdade quer penetrar neste palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua,  despudorada, não entra aqui!

Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e disse à Verdade:

- Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender o nosso Califa. Com esses ares impúdicos não poderás ir à presença do Príncipe dos Crentes, o nosso glorioso sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, pelos caminhos de Allah!

Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou muito triste a Verdade, e afastou-se lentamente do grande palácio do magnânimo sultão Harun Al-Raschid, cujas portas se lhe fecharam à diáfana formosura! Mas...

Allahur Akbar! Allahur Akbar!  Quando Deus criou a mulher, criou também a Obstinação.

E a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid...  Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os que usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras mulçumanas.

Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida com peles, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

- Quem és?

- Sou a Acusação! - respondeu ela, em tom severo.

- Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al- Raschid, Comendador dos Crentes!

O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio,  correu a entender-se como o grão-vizir.

- Senhor - disse, inclinando-se humilde, - uma mulher desconhecida, o corpo envolto em grosseiras peles,  deseja falar ao nosso soberano, o sultão Harun Al-Raschid.

- Como se chama?

- A Acusação!

- A Acusação? - repetiu o grão-vizir, aterrorizado. – A Acusação quer entrar nesse palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que não, que não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob as vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao

Califa, nosso amo e senhor!  Voltou o chefe dos guardas com a proibição do grão-vizir

e disse à Verdade.

- Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes grosseiras, próprias de um beduíno rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo e senhor, o sultão Harun Al- Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah!  Vendo quem não conseguiria realizar o seu intento, ficou

ainda mais triste a Verdade e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso Harun Al-Raschid, cuja cúpula cintilava aos últimos clarões do sol poente.  Mas...

Allahur Akbar! Allahur Akbar!

Quando Deus criou a mulher, criou também o Capricho.  E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.  Vestiu-se com ríquissimos trajos, cobriu-se com jóias e adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso senhor dos Árabes. Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês de Ramadã, o chefe dos guardas perguntoulhe:

- Quem és?

- Sou a Fábula - respondeu ela, em tom meigo e mavioso.

- Quero falar ao vosso amo e senhor, o generoso sultão

Harun Al-Raschid, Emir dos Árabes! O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio,  correu, radiante, a falar com o grão-vizir:

- Senhor, - disse, inclinando-se, humilde - uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiância de nosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Crentes.

- Como se chama?

- Chama-se a Fábula!

- A Fábula! - exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. – A Fábula quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que entre! Bem-vinda seja a encantadora Fábula: Cem formosas escravas irão recebê-la com flores e perfumes! Quero que a Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento

digno de uma verdadeira rainha!  E abertas de par em par as portas do grande palácio de

Bagdá, a formosa peregrina entrou. E foi assim, sob o aspecto de Fábula, que a Verdade conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão Harun Al-Raschid, Vigário de Allah e senhor do grande império mulçumano!

 

 

Minha vida querida. Tahan, Malba. Rio de Janeiro: Conquista, 1957,

p.93-98.

 

 

 

Identifique os elementos que constroem a narrativa

 

1) O que vocês   sabem sobre a verdade? E o que diz o grão-vizir sobre a verdade?

 

 

2) E a acusação, o que vocês tem a dizer sobre a acusação?

 

3) Quem conseguiu autorização do grão-vizir para entrar no palácio? Por quê?

 

 

4) O que as três personagens que tentarem entrar no palácio têm em comum?